Uma das primeiras lições de Direitos Fundamentais, que se aprende em qualquer livrinho sobre o assunto, são os atributos que qualificam esses direitos. Na teoria, os direitos fundamentais são absolutos, inalienáveis, indisponíveis, irrenunciáveis e imprescritíveis. Sendo absolutos, não poderiam ser relativizados; sendo inalienáveis, não podem ser vendidos; sendo indisponíveis, não podem ser negociados em favor de terceiros; sendo irrenunciáveis, são da pessoa ainda que ela não os queira; e, sendo imprescritíveis, são direitos que não "morrem", e podem ser sempre e a qualquer tempo defendidos.
Graças a Deus não sou mais professora de direitos fundamentais! Era um drama pessoal explicar uma teoria tão divorciada da prática, e uma prática tão divorciada dos ideais humanitários que encontramos na origem desses direitos -- ideais daqueles que lutaram e morreram na Queda da Bastilha, por um Estado menos tirano e uma sociedade mais protegida, igualitária, solidária, e, acima de tudo, livre - livre para pensar, se expressar, trabalhar e para enriquecer também. Se os franceses soubessem o que se faria com esses direitos depois da virada do segundo milênio, talvez não tivessem se esforçado tanto... O que se vê na atual quadra do (sub)desenvolvimento é um monumental desprezo por muitos desses direitos.
Nem vou falar de direitos sociais, como o direito à saúde, que demandam investimentos e gastos pelo Estado para serem satisfeitos - sim, perguntem a quem está na fila do SUS e eles dirão: saúde não vale nada neste país. Falo daqueles outros direitos, do tipo "custo zero" para o Estado, cujo respeito a gente costuma exigir dos nossos concidadãos. Veja-se o que aconteceu com o direito à privacidade...
Sim, acreditem, a privacidade é um direito fundamental! Está lá, no art. 5, inc. X, da Constituição Federal. Então façamos o teste: como sustentar aqueles atributos de inalienabilidade, indisponibilidade e irrenunciabilidade à luz do BBB? O Big Brother Brasil é só um exemplo microscópico do quanto temos desprezo pela privacidade. Os Brothers abrem mão da sua privacidade sem o menor constrangimento, em troca de contratos publicitários, ou simplesmente da chance de ganhar 1 milhão de reais. Mas esta é uma tendência sem retrocesso. As pessoas gostam de aparecer. Adoram. Basta ver os sites de relacionamento. Está tudo lá, inclusive documentado com fotos.
Ainda não cheguei a uma conclusão sobre qual seja a motivação do desejo de aparecer, de ser notado. Talvez seja algo relacionado ao papel que a impressão do outro (o alter) exerce para a nossa auto-estima. Mas, me pergunto, será que quanto mais o outro sabe sobre nós, mais ele gosta de nós? Devia ser o contrário, pois quanto mais a gente se expõe, mais aparecem nossos defeitos, nosso exibicionismo, nossa loucura, nosso mau-gosto, nossa breguice, nossa humanidade... E o Caetano já dizia, sabiamente: "olhando de perto, ninguém é normal".
Hoje se vive uma espécie de alteridade às avessas. Alteridade significa ter a consciência de que o outro existe, e, assim, convivemos e interagimos em sociedade, sempre ciosos dos limites que não devemos trespassar. Alteridade é, assim, conceito ímpar para a civilidade. Mas o que se vê hoje é uma necessidade, muitas vezes insaciável, de que "os outros saibam que eu existo". Ou seja, em vez de eu saber que os outros existem, são os outros que têm de saber que eu existo e assim eu lhes imponho essa consciência.
Talvez um dia se fale no direito de aparecer como um direito fundamental... Aparecer de um jeito que vai muito além do uso de ferramentas para a nossa liberdade de expressão, de um jeito que nos permita invadir o alter goela abaixo. Alguém sugere um nome pra isso?!
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