A vida era menos complicada quando podíamos vê-la por apenas dois extremos: preto e branco, certo e errado, bem ou mal. Hoje há tantas zonas cinzentas que chego a ter saudades do tempo em que se podia adotar o maniqueísmo. Isso porque, em vez dele, só me resta o cinismo.
No domingo fui assaltada dentro da minha própria casa. Aquele santuário, ou porto-seguro, para onde corremos quando estamos cansados após um dia longo de trabalho, ou tristes, ou decepcionados, aquele lugar onde repousamos e recuperamos as nossas energias, onde amamos e somos amados, onde nos sentimos seguros, "em casa", aquele santuário acabou - para mim e principalmente para os meus filhos. Ontem, depois da escola, eles não queriam vir para casa. Que coisa mais triste quando uma criança não se sente segura em casa. Para onde ir, então?!
Fomos rendidos por homens fortemente armados, bem articulados e pós-graduados em seu ofício. O controle da situação era tamanho que eles estavam calmos e até gentis. Não usaram de violência física e nem precisariam, pois quando se tem filhos pequenos assistindo a tudo, reagir nem passa pela nossa cabeça. Nos tornamos obedientes e submissos, atendendo a todas as solicitações com diligência, internamente rezando para que tudo termine bem e logo. Com tanta cooperação, o cofre foi limpo rapidinho e em poucos minutos as jóias herdadas da família que continham uma história mais importante que o seu valor, os bens adquiridos durante anos com o produto de árduo trabalho, muitos em comemoração a momentos especiais, tudo vai parar em um saco escuro e dali tomam o rumo de estranhos que ficarão felizes com as novas e fáceis aquisições.
Não chorei a perda dos relógios e jóias que se foram, e nem vou chorar. A diversão e o prazer que esses bens proporcionam não está em apenas tê-los, e sim em todo o processo de adquiri-los, que começa com trabalhar em algo que se gosta, fazer as coisas bem feitas, receber o reconhecimento e uma remuneração por isso, e só então se chega ao "poder ter" esses objetos de desejo. Por isso, tendo uma profissão de que me orgulho e um trabalho do qual eu tanto gosto, minha alegria já voltarei a sentir amanhã, quando tudo recomeçar.
A satisfação que se encontra em todo este processo um bandido jamais terá. Ele pode ter um Rolex agora, mas cada vez que olhar as horas, terá um motivo para se envergonhar. Isso jamais aconteceu comigo, muito pelo contrário, tudo o que tenho sempre me deu orgulho, porque foi conquistado honestamente num processo em que eu me conduzo com alegria e altivez. Por isso não consigo entender o bandido que rouba simplesmente para consumir esses objetos de desejo ou para vendê-los e consumir outros objetos (ou, o que me parece mais provável, para expandir os seus negócios, pois estamos falando de uma quadrilha com um business bem consolidado no mercado).
Se o cara rouba para dar de comer aos filhos, eu seria a primeira a reconhecer que eu talvez fizesse a mesma coisa se este fosse meu último recurso - veja bem, último mesmo. Mas nossos queridos bandidos não tinham cara de estar passando fome e tampouco pareciam desesperados. Estavam tranquilos, até deixaram que eu ficasse com minha aliança de casamento e meu crucifixo. Nos ofereceram água durante as duas horas de cativeiro na adega do meu vizinho, quando estávamos amontoados junto com outras vítimas do assalto, que ocorreu em vários apartamentos.
Aí, vem o dilema das zonas cinzentas. Depois de tudo acabado, meu filho, com 7 anos, que fora condenado pelos bandidos a não dizer uma palavra sequer durante o cárcere, começa a formular as perguntas até então represadas: - Mãe, porque os bandidos escolhem ser do mal? - O pai e a mãe deles não ficam tristes com eles? - O nosso bandido era bonzinho? (outros bandidos de outros apartamentos não foram tão bonzinhos como os nossos)
Perguntas que eu, fã incondicional do Coronel Nascimento, não sei responder. Para mim, os bandidos são do mal, mas, é possível argumentar, entre os bandidos do mal, alguns são mesmo bonzinhos, e por aí vai... Então, "bandido bonzinho" é uma contradição em termos, mas, ao mesmo tempo, uma realidade. A grande contradição é que, os caras entram armados na minha casa em pleno domingo, traumatizam os meus filhos, levam as minhas coisas e eu ainda tenho que me sentir feliz e agradecida porque nada pior me aconteceu, já que ninguém morreu ou sofreu violência física. E com este triste cinismo temos que levar a vida, felizes e sempre torcendo para que só o mal (e nada pior) nos aconteça. Que país de merda!
Certo estava o Delfim Neto que dizia que o Brasil só tem uma saída: o aeroporto do Galeão.
Ana, eu concordo em gênero, número e grau contigo.
ResponderExcluirÉ um trauma muito grande a ser superado. Não existe bandido bonzinho, não. Existem aqueles mais experientes. Quem entra armado no apartamento de outrem para roubar não é "bonzinho". Você ali não pensa background dele, no porquê ele virou bandido. O fato é que você é vítima e ponto final!
Depois, a defesa é quem vai transformá-lo em vítima da sociedade... beijos e espero que você e sua família se recuperem. Taís Lisbôa
Oi, Ana Paula
ResponderExcluirLamento saber do ocorrido. Nesse momento tão difícil, nossa solidariedade para ti e tua família.
O antagonismo da palavra já diz tudo: bandido bonzinho! Somente o termo bandido indica uma pessoa que vive de roubos, atividades ilícitas, pouco honesta ou tem mau caráter. Pode ser apenas uma das características, bem como pode ter todas elas agrupadas. Assim, como uma pessoa com este perfil pode ser classificada de bonzinho?
ResponderExcluirO que resta a população que trabalha para viver com dignidade? Cada vez mais procurar manter um espaço que seja seguro (???) e ficar lá, bem escondido do mundo exterior. Uma vez que a segurança (aquela mantida pelo Estado), quando não falha, por vezes volta-se contra aquele que deveria é o motivo de sua existência!
Mas, se pararmos para pensar um pouco, isto é apenas o reflexo de algo que acontece em maior grau e amplitude nas altas esferas do governo.
E não adianta querer mudar o sistema atual, pois ele está encravado nas entranhas do país desde o tempo do império! Se uns poucos tentarem mudar, a única coisa que ocorre é a mutação do sistema para adequar-se a nova realidade. E assim, tudo volta ao estado inicial - uma clara referência ao ditado popular: Mudam as moscas, mas a ... continua a mesma.