quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Autoridades no Brasil: 2 Pesos, 2 Medidas

Diz a lenda, e também a Constiuição Federal, que num Estado de Direito contemporâneo as autoridades públicas estão sujeitas ao dever de impessoalidade. Este dever, correlato do direito de igualdade que é fundamental e de todos nós, reflete um dever de objetividade na execução das leis e na promoção do bem comum. Em outros termos, porque exercem, muitas vezes, poderes de sujeição em face do cidadão comum, devem as autoridades agir com isenção e afastar o seu subjetivismo no exercício do munus público. Isso obriga as autoridades, também, à adoção de paradigmas objetivos, como os da lei que deve ser igual para todos, em substituição ao subjetivismo, à simples opinião ou aos sentimentos de justiça, raiva ou inveja que são tão comuns em todas as pessoas.


Pois muito bem, sintetizada a teoria, alguém tinha que dizer isso: existem dois pesos e duas medidas na fiscalização do trânsito em Porto Alegre. Então que seja eu, que conheço bem o dever de impessoalidade, que o diga. Há uma medida para o rico-cretino e (nenh)uma medida para o pobre-coitado.


Outro dia, lá estava eu, dirigindo o meu carrão, e, quando virei à ... direita (as reticências significam que eu preciso de alguns segundos para pensar se direita é direita mesmo ou esquerda, como a maioria das mulheres que eu conheço)... Bem, eu virei mesmo à direita, e quase colidi com uma carroça, puxada por um pobre cavalo velho, vindo na minha direção. Eu parei antes da carroça, portanto, foi ela que quase me atropelou. O pobre cavalo não tem freios ABS, como o meu carro, e de certo é mais propenso a ameaçar a segurança no trânsito que o meu carro. O melhor de tudo são os detalhes: a carroça vinha na contramão, conduzida por duas crianças - a maior com 12 anos, no máximo, e a outra, co-pilota, falava no celular, juro! - e, não perdi a oportunidade de, refeita do susto, olhar para trás e conferir: a carroça não tinha placas de identificação...


Eu poderia ter cometido um duplo-homicídio-culposo por culpa EXCLUSIVA das vítimas, mas, conhecendo o sistema como eu conheço, nem provando eu conseguiria provar isso. Afinal, sou rico-cretino e eles, pobres meninos, vítimas da vulnerabilidade social.


A EPTC, quando pensou em solucionar o problema da circulação dos carroceiros em Porto Alegre, achou uma solução genial: identificar as carroças, que passariam a ostentar placas na parte traseira assim como os veículos. Tudo resolvido! Trânsito seguro.


Esses guris do episódio estavam, numa fração de segundo, cometendo diversas infrações graves: andando na contramão, sem habilitação, sem cinto de segurança, sem IPVA/DPVAT pago, sem certificado de registro da carroça, celular na mão, carroça desidentificada e, ainda, cometendo maus-tratos aos animais (refiro-me à tunda que levava o pobre cavalo). Perguntem se eles levam alguma multa? Claro que não. Advertência? Não.


As autoridades têm pena dos coitadinhos e por isso não se preocupam se eles são uma ameaça à segurança no trânsito. Se fosse eu no meu carrão, cometendo todas essas infrações, levaria todas as multas e ainda ficaria sem o carro se tivesse esquecido a habilitação na outra bolsa (a da noite anterior). Ninguém tem pena de mulher que dirige carrão. 


Acreditem se quiser, mas coincidência ou não, quando eu estreei o meu carro, novinho (carro bom e novo é la pièce de résistance do kit-cretino), eu levei uma multa (da PRF) por ultrapassar pela ... direta. Detalhe: NA FREEWAY, onde tem três pistas!!! Eu estava na pista lateral, a da direita, e passei pela viatura da polícia rodoviária, que vinha na pista do meio. Eu estava dentro da velocidade limite, mas vi que os policiais me olharam com aquele olhar radiante. Pensei que estavam me paquerando (quanto otimismo!), mas eles estavam sorridentes porque, afinal, me aplicariam uma multa que eu receberia depois pelo correio, por ultrapassá-los pela ... direita. O que, na freeway,  tenha a Santa paciência! Mas não discuti, simplesmente paguei. Cometi a infração e mereci a multa, e acredito que a lei tem que ser cumprida. Só que tem que valer pra todos, não só pra mim.


A aplicação da lei de forma desigual é, por si só, injusta. É claro que a sociedade é desigual, mas muitas leis são desiguais também, justamente para atenuar essa desigualdade. O que não faltam no Brasil são leis protetivas dos mais vulneráveis, leis inclusivas e que buscam uma sociedade mais igualitária. Agora, aquelas leis que visam a um bem comum específico, como as regras de trânsito, não deixam qualquer margem para tratamento desigual. Quando as autoridades fazem vista grossa a ameaças reais, porque vem dos pobres-coitados, e usam lente de aumento para as infrações do rico-cretino, elas deixam de cumprir a sua função de forma impessoal. Deixam de cumprir a Constituição. E, pior, mostram-se incompetentes para a finalidade do cargo que ocupam, que é a promoção da segurança no trânsito.

Um comentário:

  1. Deixa eu contar o que me aconteceu, uns três anos atrás.
    Aberta a temporada de festas na praia logo arranjei uma amiga para se aventurar comigo nas festas de Atlântida.
    Não sei me lembro bem o motivo, mas acabamos pegando a Freeway no carro dela. Era a primeira vez que ela pegava a estrada com o carro, presente do avô. Antes, paramos no posto e um cara insistente e mala queria nos empurrar um extintor de incêndio novo, que custava uma fortuna.
    Eu praticamente a convenci a não comprar, dizendo que aquilo era um roubo e que ninguém iria parar o carro para ver o extintor. O cara, muito bravo, disse que a multa era super alta para quem, como nós, desafiássemos a lei, andando com extintor vencido.
    Bem, pegamos a estrada e resolvemos que iríamos dar uma parada em Tramandaí para visitar uma amiga.
    Quase no final da viagem, um policial faz sinal para a gente parar. Ela, toda emocionada, diz: “Ai que chique, nunca fui parada por um policial” (era a primeira vez dela numa estrada...)
    Nós éramos só sorrisos para o policial, jogando o maior charme. Imagina, duas cabeças de vento indo fazer festa na praia, achando o máximo a primeira barreira da polícia. Até quando ele nos mandou encostar o carro e descer a minha amiga achou a maior diversão.
    Nós, no entanto, não sabíamos de duas coisas: (i) a polícia havia adquirido um aparelho tipo agente 007, que captava a placa do carro, enviava para o sistema e conferia se estava tudo ok; (ii) a minha amiga, que não entendia muito de carro, nem sabia o que era IPVA, e o avô, gente boa, tinha esquecido de pagar o imposto no vencimento.
    Resultado: o carro seria aprendido e nós ficaríamos ao léu na beira da estrada, de mala e cuia, literalmente.
    Mas, antes o policial resolveu dar uma geral, para verificar o que mais havia de errado no carro. Eu logo me lembrei da praga do cara do posto e da droga do extintor vencido. Daí partimos para uma operação tudo ou nada, entramos dentro do carro com o policial e deixamos o homem doidinho, de tanto que a gente falou, dizendo que estávamos tão felizes indo para praia e que o IPVA já seria pago (a essa altura a minha amiga já havia ligado para o avô que estava correndo para o banco pagar o imposto), que de resto estava tudo ótimo com o carro e os itens de segurança. Começamos a piscar tudo no carro para distraí-lo.
    No final, o policial de tão tonto esqueceu de verificar o extintor de incêndio [e olha que ele estava sentado justo no banco onde estava o extintor vencido] , mas disse que o sistema 007 já havia captado a placa e que não tinha jeito, apesar dele “ter ido com a nossa cara”, o carro seria aprendido e, mesmo com o imposto pago, só seria liberado no outro dia.
    A gente disse que o país era burocracia, que a essa altura o avô já tinha pagado o IPVA e enviaria por fax, mas que tudo bem, a lei era para todos e a gente tinha errado, então, estávamos resignadas a ficar sem carro e ao léu na beira da estrada, com as malas e tudo o mais... Só externamos que, sem o carro, talvez perdêssemos a primeira noite de festa, nossa única tristeza... O policial ficou com pena de deixar duas cabeças de vento ao léu. No final, acampamos na polícia rodoviária, tomando chimarrão e batendo papo até que a nossa amiga de Tramandaí apareceu para o resgate. O carro ficou só para o outro dia, depois de pagarmos uma polpuda diária para ele pernoitar num pátio imundo.

    Para a gente, as cabeças de vento, foi tudo um pequeno incômodo e uma grande farra. Mas, além disso, foi legal ver um policial honesto, que aplicou a lei como tinha que ser, assim como saber que a polícia tem esse aparelho tipo 007, que um dia, além de pegar cabeças de vento como nós, pode também pegar bandidos e malandros em geral.
    Moral da estória: nem tudo está perdido, tem muita gente honesta aplicando a lei de forma igual para todos: cabeças de vento, bandidos e malandros em geral.

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