terça-feira, 3 de agosto de 2010

A Gafe 1: (In)Consciência Ecológica


Uma vez eu participei de um almoço em que estava presente o Ministro Carlos Britto, do STF. Ele ainda não era ministro, então ninguém disputava um lugar perto dele na mesa e sentamos de frente um pro outro. Carlos Ayres Britto era Professor de Direito Constitucional em Aracajú, e estávamos na Bahia para o Congresso de Direito do Estado, que acontece todos os anos em Salvador. Naquele exato momento, estávamos na Churrascaria Porcão.
O Dr. Britto é um sujeito encantador, um doce de pessoa. Bom de prosa e também de poesia. Reparei que ele, magrinho e muito frugal, só comia salada, enquanto eu, a gauchinha, dê-lhe picanha e fraldinha. Perguntei se ele não apreciava uma picanha linda, gorda e perfeita como aquela, ao que ele respondeu-me, com aquele sotaque meigo e doce que a gente só ouve da Bahia pra cima:
- Não, minha querida, é que sou vegetariano.
Minha curiosidade foi subitamente despertada. Ser vegetariano na minha terra é quase crime.
- Vegetariano, Professor? Trata-se de alguma recomendação médica?
Ao que ele respondeu, com um sorriso calmo que só as pessoas mais elevadas sabem expressar:
- Não, não é pela saúde não... É que eu acredito que o homem pode ter uma forma de se alimentar sem infligir sofrimento sobre os outros animais...
Silêncio. Com essa resposta, eu fiquei mais rosada que a picanha no meu prato. Aquela baita picanha no meu prato e eu pensei nas vaquinhas, lânguidas, a pastar nos verdes prados do meu rincão. Ninguém gosta de lembrar das vaquinhas quando come picanha. Me senti o próprio bicho-papão. Cruel.
- O senhor também não come nem frango nem peixe?, perguntei, admirada.
- Não, pela mesma razão, ele respondeu.
Coerente, pensei. Fiquei, por um segundo, pensativa (mulheres não conseguem parar para pensar por mais de um segundo). Estava diante de um santo homem, de um sujeito que renunciava, literalmente, aos prazeres das carnes branca e vermelha pelo bem dos animais. Coisa de santidade. Não me contive (mulher dificilmente se contém):
- Mas e o senhor usa cinto, sapatos, carteira de couro? –ao que olhei indiscretamente por debaixo da mesa para confirmar os sapatos de couro e prossegui:
- O senhor sabe que quando eu morei na Alemanha, eu tinha uma amiga americana, meio esquisita, que também era vegetariana (no “esquisita”, meu marido lançou-me “aquele” olhar) pelas mesmas razões que o senhor... Mas a única vegetariana coerente que eu conheci, pois ela não usava nada de couro. Nem tênis, nem bolsa, nem carteira, nadinha. Uma santa. Para mim, seria mais difícil renunciar aos sapatos e bolsas do que aos prazeres da carne – mesmo sendo gaúcha e louca por churrasco...
Enquanto ele me olhava, um tanto pensativo, dois chutões me atingiram por debaixo da mesa. Eram do meu marido, nesta altura já mais ligado na minha conversa do que na dele com o sujeito ao lado. Dois chutes significam isso mesmo: calada! Um chute era apenas para mudar de assunto. Código de casal antigo, coisa super cordial.
O Professor disse, gentil e simpático, com um amplo sorriso:
– Pois é, acho que você me pegou...
– Não era a minha intenção, Professor (jura!)... Essa minha amiga era muito esquisita, mas uma grande lição de coerência. E fez de mim uma carnívora coerente...
Garfei e levei à boca aquele pedaço mais bonito da picanha, aquele que normalmente a gente deixa por último, que envolve a carne rosadinha com o tostadinho salgado, e fui mastigando, bem mastigadinho, para que o silêncio se prolongasse. Pensei nos meu casaquinhos de couro, lindos, leves, macios, com cheirinho de couro e tudo, pendurados com todo o carinho no meu closet. Pensei nos meus sapatos, oh, os meus lindos sapatos, enfileiradinhos, organizados pela cor. Vero Cuoio, Echtes Leder, Couro Legítimo, Pure Leather... Ai meu Deus, como eu gosto disso! E os pobres animais sofrem por conta das minhas paixões...
Me consolei por, pelo menos, não gostar de peles - raposa, coelho, chinchila, essas coisas. Pele é cruel (ninguém se alimenta do pobre do bicho), brega, e me dá alergia. Mas couro, de vaca e de cabra... Tudo é irresistível, do churrasco ao sapato! Mas enquanto meu alterego dizia: predadora, predadora!, e o flash da vaquinhas me assaltava o pensamento, o ego respondia, abalizado: mas elas se reproduzem aos milhares, não é mesmo?! (e disso o ego sabe, o bom do mundo animal é isso: a gente se reproduz. Não porque a perpetuação da espécie seja o fim, mas porque a gente a-do-ra os meios.) Movimentam a economia, geram empregos, renda, tributos e arrecadação, e daí geram escolas, hospitais, saneamento, não é mesmo?! (o ego adora dar discurso)
A picanha já estava triturada e sem gosto, não dava para prolongar mais o silêncio. Tive que engolir. O Professor continuava me olhando. Minha última fala tinha terminado com reticências, então ele esperava uma conclusão. Pensei nos casaquinhos de couro, nas bolsas e nos sapatos, prazeres pelos quais valeria arder na chama do inferno... Então arrematei:
- E esse calorão no mês de maio na Bahia, Professor? Isso é normal?!

7 comentários:

  1. Estou com dor no estômago de tanto rir!!! Genial,amei!

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  2. Arrasou! Sabe que eu sempre tive uma certa dúvida em relação aos vegetarianos: será que as cenourinhas sofrem quando são arrancadas da terra???

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  3. Prima, teu texto tá "superbe"!!! Bem tu.
    Não contive a risada, as reflexões e a vontade de correr pruma churrascaria daqui a pocuo!
    Parabéns, lindona, segue escrevendo.
    E quando der, visita meu Bicho Blogue: http:// www.tatianadruck.blogspot.com

    bjks!

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Dra Ana Paula,
    Adorei a história sobre o papo com o ora Ministro a respeito de comer ou não carnes, sempre penso na contradição dos vegetarianos que usam couro...mas ouso discordar da sua opinião sobre o uso de peles. Vejo aí uma importante função social: estamos contribuindo com a extinção de pragas (espero que o pessoal do direito ambiental não esteja lendo isso...), afinal, a maioria das peles são feitas com animais que não deixam de ser praticamente ratos (agora comprei meu passaporte para o inferno)...e ainda recomendo na próxima viagem uma passadinha pelo setor de peles da Fendi, o design assinado pelo pelo Lagerfeld faz delas te tudo (luxuosas, escandalosas, polêmicas, maravilhosas, ...) menos bregas ... Pelo que se viu, não me envergonho de pensar assim sobre o assunto (e olha que o meu namorado tem uma marca de roupas ecologicamente corretas...), afinal, eu também como carne!
    Parabéns pela iniciativa do blog!
    Abs.,
    Lívia

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  6. Oi Lívia, seja bem vinda ao clube politicamente incorreto! Entendo sua fixação nas peles, mas nem mesmo a Fendi (que considero mesmo top neste ramo e vejo que vc entende do assunto) consegue fazer bater o meu coração... Não adianta, coloco uma pele e me sinto a minha vovó, só falta o cheiro de Madame Rochas e pó de arroz...
    Mas eu só te entendo, pois o mesmo desprezo que tens pelos ratos eu tenho pelas cobras (e as coitadas sen veiculam pestes por aí) - aliás, existe lugar melhor pra elas do que nos sapatos?!!! Bjs!

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